Problemas De Gênero - Feminismo E Subversão Da Identidade » Tifsa Brasil

Problemas de gênero – Feminismo e subversão da identidade

O livro Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, é uma excelente obra que veio para desconstruiu o conceito de gênero no qual está baseada toda a teoria feminista. A divisão sexo/gênero funciona como uma espécie de pilar fundacional da política feminista e parte da ideia de que o sexo é natural e o gênero é socialmente construído. Essa é a premissa que Judith Butler problematizava no livro, primeiro da autora traduzido no Brasil (foi lançado nos Estados Unidos em 1990) e ainda hoje reconhecido como sua obra mais importante. Discutir essa dualidade foi o ponto de partida para que a pensadora questionasse o conceito de mulheres como sujeito do feminismo.

O par sexo/gênero foi um dos pontos de partida fundamentais (talvez fosse melhor dizer fundacionais) da política feminista. O desmonte da concepção de gênero seria o desmonte de uma equação na qual o gênero seria concebido como o sentido, a essência, a substância, categorias que só funcionariam dentro da metafísica que Butler também questionou. Assim como Derrida desmontou a estrutura binária significante/significado e a unidade do signo,1 e fez com isso uma crítica à metafísica e às filosofias do sujeito, Butler desmontou dualidade sexo/gênero e fez uma crítica ao feminismo como categoria que só poderia funcionar dentro do humanismo.2 Para refletir sobre os efeitos dessa desconstrução, é fundamental entender desconstrução não como desmonte ou destruição.

Repensar teoricamente a “identidade definida” das mulheres como categoria a ser defendida e emancipada no movimento feminista parece ter sido a principal tarefa de Butler. O problema que ela apontou foi o da inexistência desse sujeito que o feminismo quer representar. Esse era um debate acadêmico preexistente no qual Butler se inseriu como uma das pensadoras que, de alguma forma, radicalizou aquilo que a teoria feminista já problematizava. Nessa discussão sobre a identidade das mulheres que Butler reconhecia já estar posta – o livro é de 1990 – a filósofa acrescentou a crítica ao modelo binário, que foi fundamental na discussão que a autora levantou a respeito da distinção sexo/gênero.

O conceito de gênero como culturamente construído, distinto do de sexo, como naturalmente adquirido, formaram o par sobre o qual as teorias feministas inicialmente se basearam para defender perspectivas “desnaturalizadoras” sob as quais se dava, no senso comum, a associação do feminino com fragilidade ou submissão, e que até hoje servem para justificar preconceitos. O principal embate de Butler foi com a premissa na qual se origina a distinção sexo/gênero: sexo é natural e gênero é construído. O que Butler afirmou foi que, “nesse caso, não a biologia, mas a cultura se torna o destino” (p. 26). Para a contestação dessas características ditas naturalmente femininas, o par sexo/gênero serviu às teorias feministas até meados da década de 1980, quando começou a ser questionado.

Butler apontou para o fato de que, embora a teoria feminista considere que há uma unidade na categoria mulheres, paradoxalmente introduz uma divisão nesse sujeito feminista. Butler quis retirar da noção de gênero a idéia de que ele decorreria do sexo e discutir em que medida essa distinção sexo/gênero é arbitrária. Butler chamou a atenção para o fato de a teoria feminista não problematizar outro vínculo considerado natural: gênero e desejo. Até que ponto se poderia identificar aqui a mesma crítica derridiana do caráter arbitrário do signo, como uma falsa unidade na teoria de Saussure, como uma premissa nunca antes contestada? É o que identificamos quando Butler afirma: “talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma” (p. 25). Butler indicava, assim, que o sexo não é natural, mas é ele também discursivo e cultural como o gênero.

Para Butler, a teoria feminista que defende a identidade dada pelo gênero e não pelo pelo sexo escondia a aproximação entre gênero e essência, entre gênero e substância. Segundo Butler, aceitar o sexo como um dado natural e o gênero como um dado construído, determinado culturalmente, seria aceitar também que o gênero expressaria uma essência do sujeito. Ela defendeu que haveria nessa relação uma “unidade metafísica” e chamou essa relação de paradigma expressivo autêntico, “no qual se diz que um eu verdadeiro é simultâneo ou sucessivamente revelado no sexo, no gênero e no desejo” (p. 45). O que Butler parece ter indagado foi, afinal, quando acontece essa construção do gênero? Foi em função dessa questão que ela discutiu (ou desconstruiu) várias das teorias feministas sobre gênero.

No livro, a autora estabelece interlocuções com diferentes autoras, entre as quais destaca-se Simone de Beauvoir. No debate com Beauvoir, Butler indica os limites dessas análises de gênero que, segundo ela, “pressupõem e definem por antecipação as possibilidades das configurações imagináveis e realizáveis de gênero na cultura” (p. 28). Partindo da emblemática afirmação “A gente não nasce mulher, torna-se mulher”, Butler aponta para o fato de que “não há nada em sua explicação [de Beauvoir] que garanta que o ‘ser’ que se torna mulher seja necessariamente fêmea” (p. 27).

Nessa tentativa de “desnaturalizar” o gênero, Butler propunha libertá-lo daquilo que ela chama – em uma referência a Nietzsche – de metafísica da substância. Segundo Butler, na maioria das teorias feministas o sexo é aceito como substância, como aquilo que é idêntico a si mesmo, em uma proposição metafísica. Para ela, a posição feminista humanista entende gênero como “atributo” de pessoa, “caracterizada essencialmente como uma substância ou um ‘núcleo’ de gênero preestabelecido, denominado pessoa” (p. 29). O que Butler argumentou foi que, ao contrário do que defendiam as teorias feministas, o gênero seria um fenômento inconstante e contextual, que não denotaria um ser substantivo, “mas um ponto relativo de convergência entre conjuntos específicos de relações, cultural e historicamente convergentes” (p. 29).

Foi pelo caminho da crítica às dicotomias que a divisão sexo/gênero produz que Butler chegou até a crítica do sujeito e contribuiu para o desmonte da ideia de um sujeito uno. Note-se que Butler não recusa completamente a noção de sujeito, mas propõe a ideia de um gênero como efeito no lugar de um sujeito centrado. Nas palavras de Butler, essa possibilidade se apresenta: “A presunção aqui é que o ‘ser’ um gênero é um efeito” (p. 58, grifo da autora). Aceitar esse caráter de efeito seria aceitar que a identidade ou a essência são expressões, e não um sentido em si do sujeito.

Aqui, antes de avançar no pensamento de Butler, vale discutir qual o significado de différance para Derrida. Uma definição relativamente simples explica différance primeiro pelo que ela não é: “Não é nenhuma diferença particular ou qualquer tipo privilegiado de diferença, mas sim uma diferencialidade primeira em função da qual tudo o que se dá só se dá, necessariamente, em um regime de diferenças (e, portanto, de relação com a alteridade)”. Em outras palavras, nada é em si mesmo, tudo só existe em um processo de diferenciação. Assim, a identidade não é algo, mas é efeito que se manifesta em um regime de diferenças, num jogo de referências. Para Derrida, por exemplo, na linguagem só existem significantes, que se expressam em uma relação de remetimentos. Butler diz que não existe uma identidade de gênero por trás das expressões de gênero, e que a identidade é performativamente constituída. O que Derrida diz sobre o signo é que não há significado por trás do significante, e que o sentido é efeito constituído por uma cadeia de significantes.

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