1. Sendo a índole de Cristo dupla: uma, semelhante à cabeça do corpo, e por está o reconhecemos como Deus, e outra, comparável aos pés, mediante a qual, e para nossa salvação ele se revestiu de homem, sujeito ao mesmo que nós, nossa exposição a seguir será perfeita se iniciarmos o discurso de toda sua história partindo dos pontos principais e dominantes. Deste modo, a antiguidade e o caráter divino dos cristãos ficará patente aos olhos de todos que pensam que [o cristianismo] é algo novo, estranho, de ontem e não de antes.
2. Nenhum tratado poderia bastar para explicar em pormenores a própria substância e natureza de Cristo, por isso o Espírito divino diz: Sua linhagem, quem a narrará?3; pois na verdade ninguém conheceu o Pai senão o Filho, e ninguém conheceu alguma vez ao Filho, segundo sua dignidade, se não o próprio Pai que o engendrou.
3. E quem, a não ser o Pai, poderia conceber sem impureza a luz que é anterior ao mundo e a sabedoria inteligente e substancial que precedeu aos séculos, o Verbo vivente no Pai e que desde o princípio é Deus, o primeiro e único que Deus engendrou antes de toda a criação e de toda a produção de seres visíveis e invisíveis, o general do exército espiritual e imortal do céu, o anjo do grande conselho, o servidor do pensamento inefável do Pai, o fazedor de todas as coisas junto ao Pai, a causa segunda de tudo depois do Pai, o Filho de Deus, genuíno e único, o Senhor, o Deus e Rei de todos os seres, que recebeu do Pai a autoridade soberana e a força, junto com a divindade, o poder e a honra? Porque, em verdade, segundo o que dizem d’Ele os misteriosos ensinamentos das Escrituras: No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada foi feito.
4. E isto mesmo que ensina o grande Moisés, como o mais antigo dos profetas, ao descrever, sob a inspiração do espírito divino, a criação e a ordenação do universo: o criador e fazedor do universo cedeu a Cristo e apenas a Cristo, seu divino e primogênito Verbo, o fazer os seres inferiores; e com Ele o vemos conversando acerca da formação do homem; Disse também Deus: Façamos o homem à nossa imagem e à nossa semelhança?
5. Fiador desta sentença é outro profeta, ao falar assim de Deus em certa passagem de seus hinos: Pois ele falou, e foi feito; ele ordenou, e foi criado. Introduz aqui o Pai e criador dispondo com gesto régio, na qualidade de soberano absoluto, e o Verbo divino, não outro que o mesmo que nos foi anunciado, como segundo depois d’Ele e ministro executor das ordens paternas.
6. A este já desde o alvorecer da humanidade, todos quantos nos foi dito que sobressaíram por sua retitude e sua religiosidade: os companheiros do grande servidor Moisés, e antes dele Abraão, o primeiro, assim como seus filhos e todos que se mostraram justos e profetas, ao contemplá-lo com os olhos límpidos de sua inteligência, o reconheceram e renderam-lhe o culto devido como
O Filho de Deus
7. E Ele mesmo, sem desviar em nada de sua piedade para com o Pai, tornou-se para todos o mestre do conhecimento do Pai. E assim lemos que o Senhor Deus foi visto por Abraão, que estava sentado no carvalhal de Manré, sob a forma de um homem comum.9 Abraão se prostra de pronto e, ainda que o olhe com seus olhos de homem, ainda assim a adora como Deus, suplica-lhe como Senhor e confessa saber de quem se tratava, ao dizer textualmente: Senhor, tu que julgas toda a terra, não vais fazer justiça?
8. Porque, se nenhuma razão pode admitir que a substância não criada e imutável de Deus todo-poderoso se transforme na forma de homem, nem que com a aparência de homem criado engane os olhos dos que o veem, nem que a Escritura forje enganosamente tais coisas, um Deus e Senhor que julga toda a terra e faz justiça, e que é visto sob a aparência de homem, nem se permitindo dizer que se trata da causa primeira do universo, que outro poderia ser proclamado como tal, senão seu único e preexistente Verbo? Sobre ele também se diz nos salmos: Mandou seu Verbo e os sanou e os livrou de sua corrupção.
9. Moisés o proclama claramente segundo Senhor depois do Pai quando diz: Fez o Senhor chover enxofre e fogo, da parte do Senhor sobre Sodoma e Gomorra. Também a Sagrada Escritura o proclama Deus quando apareceu a Jacó na figura de um homem e falou a ele dizendo: Já não te chamarás Jacó, e sim, Israel, pois lutaste com Deus, e então Jacó chamou àquele lugar “Visão de Deus”, dizendo: Porque vi Deus face a face, e a minha vida se salvou.
10. E não se pode supor que estas aparições divinas mencionadas sejam de anjos inferiores e servidores de Deus, pois quando algum destes aparece aos homens, não se cala a Escritura, mas chama-os por seu nome, não Deus nem sequer Senhor, mas anjos, como é fácil provar com incontáveis passagens.
11. E a este Verbo, Josué, sucessor de Moisés, depois de havê-lo contemplado não de outra maneira que em forma e figura de homem também, chama-o príncipe do exército de Deus, como fazendo-o chefe dos anjos e arcanjos do céu e dos poderes superiores, e como sendo poder e sabedoria do Pai e a quem foi confiado o segundo posto do reinado e do principado sobre todas as coisas.
12. Porque está escrito: Estando Josué perto de Jericó, levantando os olhos, viu diante dele um homem que trazia na mão uma espada nua; chegou-se Josué a ele, e disse-lhe: És tu dos nossos, ou dos nossos adversários? Respondeu ele: Eu sou o general do exército do Senhor; acabo de chegar. Então Josué se prostrou sobre o seu rosto na terra e disse-lhe: Que diz meu Senhor ao seu servo? Respondeu o general do exército do Senhor a Josué: Descalça as sandálias de teus pés, porque o lugar em que estás é santo.
13. De onde, partindo das próprias palavras, observarás que este é o mesmo que se revelou a Moisés, pois efetivamente a Sagrada Escritura refere-se a ele nos mesmos termos: Vendo o Senhor que ele se aproximava para ver, o Senhor, do meio da sarça, o chamou, e disse: Moisés, Moisés! Ele respondeu: Eis-me aqui. E disse o Senhor: não te chegues para cá; tira as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é terra santa. E lhe disse: Eu sou o Deus de teu pai, Deus de Abraão, Deus de Isaque e Deus de Jacó.
14. E que ao menos há uma substância anterior ao mundo, viva e subsistente, que serviu de ajuda ao Pai e Deus do universo na criação de todos os seres, chamada Verbo de Deus e Sabedoria. Além das provas expostas, nos foi dado ouvi-lo da própria Sabedoria em pessoa que, pela boca de Salomão, nos inicia claramente em seu próprio mistério: Eu, a Sabedoria, plantei minha lenda no conselho e invoquei o conhecimento e a inteligência; por meu intermédio reinam os reis, e os potentados administram justiça; por meu intermédio os grandes são engrandecidos; e por meu intermédio os soberanos dominam a terra.
15. Ao que acrescenta: O Senhor me criou como princípio de seus caminhos em suas obras, antes dos séculos assentou meus fundamentos. No princípio, antes que fizesse a terra, antes que brotassem as fontes das águas, antes de firmar os montes e antes de todos os outeiros, engendrou a mim. Quando preparava os céus, eu estava com Ele; e quando tornava perenes os mananciais que estão sob o céu, eu estava com Ele a dirigir. Eu me sentava ali onde a cada dia Ele se agradava e me encantava estar diante d’Ele em toda ocasião, quando Ele se congratulava por ter terminado o universo.
16. Brevemente pois, está exposto que o Verbo divino existia antes de tudo, e também a quem apareceu, já que não o fez a todos.
17. Mas por que não foi isto ensinado antes, antigamente, a todos os homens e a todas as nações assim como é agora? Talvez possa explicá-lo esta resposta: a vida primitiva dos homens era incapaz de encontrar um lugar para o ensinamento de Cristo, todo sabedoria e virtude.
18. De fato, logo no início, depois de seu primeiro tempo de vida feliz, o primeiro homem se afastou dos mandamentos divinos e lançou-se nesta vida mortal e perecível, trocando as delícias divinas do começo por esta terra maldita. E seus descendentes povoaram toda nossa terra, e com exceção de uns poucos aqui e ali, foram manifestamente degenerando e chegaram a ter uma conduta própria de animais e uma vida intolerável.
19. Não lhes ocorria sequer pensar em cidades, nem em normas, nem em artes, nem em ciências. De leis e juízos, assim como da virtude e da filosofia não conheciam nem o nome. Como gente rude e selvagem, levavam vida nômade por lugares desertos. Com a excessiva maldade a que livremente se entregaram, corrompiam o raciocínio natural e toda semente de inteligência e suavidade próprias da alma humana. E a tal ponto se entregavam sem reservas a toda iniquidade, que por vezes se corrompiam mutuamente, às vezes se matavam uns aos outros, ocasionalmente praticavam a antropofagia, levaram sua ousadia até a combater contra Deus e travar estas guerras de gigantes por todos conhecidas, e pensaram em fortificar a terra contra o céu e preparar-se, em seu louco desvario, para fazer guerra àquele que está sobre tudo.
20. Aos que levavam tal vida, Deus, que tudo controla, perseguiu com inundações e incêndios devastadores, como se fossem uma floresta selvagem espalhada pela terra, e os abateu com fomes contínuas, com pestes e guerras, e ainda fulminando-os do alto, como se com estes remédios tão amargos tentasse eliminar uma espantosa e gravíssima enfermidade das almas.
21. Então pois, quando estavam realmente a ponto de chegar ao estupor da maldade, como o de uma tremenda embriaguez que obscurecesse e afundasse em trevas as almas de quase todos os homens, a Sabedoria de Deus, sua primeira e primogênita criatura, o próprio Verbo preexistente, por um excesso de amor aos homens, se manifestou aos seres inferiores, algumas vezes por meio de visões de anjos e outras por si mesmo, como poder salvador de Deus, a alguns poucos dos antigos varões amigos de Deus, e não de outra maneira que em forma de homem, a única em que poderia aparecer para eles.
22. Mas uma vez que, por meio destes, a semente da religião se estendeu a uma multidão de homens, e surgiu dos primeiros hebreus da terra uma nação inteira que se apegou à religião, Deus, por meio do profeta Moisés, entregou a estes, como a homens que continuavam em seu antigo estilo de vida, imagens e símbolos de certo misterioso sábado e da circuncisão, e iniciou-os em outros preceitos espirituais, mas não revelou-lhes o próprio mistério.
23. Mas a sua lei ficou famosa, e como uma brisa perfumada difundiu-se entre os homens. Então, a partir deles, as mentes da maioria dos povos se foi suavizando por influência de legisladores e filósofos daqui e d’acolá, e a própria condição de animais rudes e selvagens foi-se transformando em suavidade, ao ponto de chegarem a uma paz profunda, amizade e trato de uns com os outros. Pois bem, assim é que finalmente, no início do império romano e por meio de um homem que em nada diferia de nossa natureza quanto à substância corporal, se manifestou a todos os homens e a todas as nações espalhadas pelo mundo considerando-os preparados e dispostos já a receber o conhecimento do Pai, aquele mesmo mestre de virtudes em pessoa, o colaborador do Pai em toda boa obra, o divino e celestial Verbo de Deus, e tão grandes coisas realizou e padeceu quantas se achavam nas profecias; estas haviam proclamado de antemão que um homem e Deus ao mesmo tempo viria a habitar nesta vida e realizaria maravilhas e seria reconhecido como mestre da religião de seu Pai para todas as nações; também haviam proclamado a maravilha de seu nascimento, a novidade de seus ensinamentos, suas obras admiráveis e, como se isto fosse pouco, a forma de sua morte, sua ressurreição de entre os mortos e sobretudo sua divina restauração nos céus.
24. Quanto ao reinado final do Verbo, o profeta Daniel, contemplando-o sob influência do espírito divino, sentiu-se divinamente inspirado e descreveu assim, bem ao estilo humano, sua visão: Porque eu – disse – estava olhando até que foram colocados tronos, e um ancião de muitos dias se assentou. E sua roupa era alva como a neve, e seu cabelo como lã limpa; seu trono era uma chama de fogo, e suas rodas, fogo ardente. Um rio de fogo brotava diante d’Ele e milhares de milhares o serviam e miríades e miríades estavam diante d’Ele. Sentou-se o tribunal e se abriram os livros.
25. Após poucas linhas continua dizendo: Eu estava olhando, e eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do homem que dirigiu-se ao Ancião de muitos dias, e o fizeram chegar até ele. Foi-lhe dado domínio e glória e o reino, para que os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio eterno, não passará, e o seu reino não será destruído.
26. Pois bem, está claro que todas estas coisas não poderiam referir-se a outro que a nosso Salvador, ao Deus-Verbo, que no princípio estava em Deus e que, por causa de sua encarnação nos últimos tempos, foi chamado Filho do homem.
27. Mas fiquemos contentes com o que foi dito, para a presente obra, pois em comentários especiais já reuni as profecias que tangem a Jesus Cristo, nosso Salvador, e em outros escritos dei uma melhor demonstração de tudo que expusemos acerca d’Ele.
Você está sendo o livro: História Eclesiástica, que conta sobre os mártires dos apóstolos.