História dos Hebreus De Abraão à queda de Jerusalém - Capítulo 18 » Tifsa Brasil

História dos Hebreus De Abraão à queda de Jerusalém – Capítulo 18

Com que furor Caio trata Fílon e os outros embaixadores dos judeus de Alexandria, sem querer escutar suas razões. Mas é preciso passarmos agora ao que aconteceu no assunto que era o motivo de nossa embaixada. Chegou o dia, quando Caio devia nos dar audiência; quando fomos introduzidos à sua presença, foi-nos fácil conhecer, logo de início, por seu aspecto e seus gestos, que o teríamos por inimigo e não por juiz. Se ele tivesse querido agir como juiz, ele deveria ter examinado com seu conselho um negócio de tal importância, onde se tratava dos privilégios de uma grande multidão de judeus que moravam em Alexandria e de que gozavam há mais de quatrocentos anos e que se tinham até então observado, sem jamais revogá-los nem deles duvidar. Ele devia ouvir as partes: ele devia aceitar as advertências e pronunciar por fim um juízo justo e equânime. Mas, em vez de observar essas regras da justiça, o impiedoso tirano, enrugando o sobrecenho com brutal altivez, mandou vir dois intendentes dos jardins de Mecenas e de Lâmia, que estão perto da cidade e do seu palácio, onde ele se tinha já há três ou quatro dias retirado. Ordenou-lhes que abrissem as portas de diversos aposentos daqueles belos jardins, porque queria passear por toda a parte e nos fez entrar também. Caminhamos diante dele e o saudamos, dando-lhe o nome de Augusto e de imperador.

A maneira com ele recebeu a saudação, tão mansamente e com tanta afabilidade, começou por nos fazer perder a esperança não somente do bom êxito da nossa empresa, mas até de nossa vida. Pois ele nos disse, franzindo a testa e com um riso sarcástico: “Não sois aqueles inimigos declarados dos deuses que, embora todos os outros me reconheçam por deus, me desprezais e preferis adorar um Deus que não se conhece?” Depois elevou as mãos para o céu e proferiu palavras que eu escutei com horror e não as posso repetir. Nossos adversários, então, não duvidando de que tinham ganho a causa, não puderam ocultar sua grande alegria e não houve um só de todos os nomes e títulos com que se honram os deuses, que eles não lhe dessem. Um certo Isidoro, que era um grande e perigoso caluniador, vendo que Caio escutava com grande prazer essas bajulações e elogios ímpios, disse-lhe: “Detestaríeis ainda mais esses homens e os que os mandam, se soubésseis quão grande é o ódio que eles vos têm. São os únicos de todos os homens que se recusam a oferecer vítimas pela vossa saúde e geralmente todos os dessa nação são do mesmo parecer”. A estas palavras, nós exclamamos: “São calúnias, senhor! Imolamos hecatombes e depois de ter banhado o altar com o sangue das vítimas, nós não levamos a carne para comer, como fazem vários outros povos, mas as queimamos todas, no fogo sagrado. Assim fizemos por três vezes; a primeira quando subistes ao trono, a segunda quando ficastes curado daquela grave enfermidade que afligiu toda a terra, e a terceira quando pedimos a Deus que vos fizesse vencedor da Alemanha”.

“É verdade”, respondeu o furioso imperador, “oferecestes sacrifícios, mas a um outro e não a mim. Assim, que honra recebi então?” A estas palavras sentimos o sangue gelar-nos nas veias. Caio, entretanto, visitava todos os aposentos, notava-lhes os defeitos, ordenava as modificações que queria se fizessem. Nós o seguíamos impelidos pelos nossos adversários, que se riam de nós; injuriavam-nos com satíricas e humilhantes zombarias, como fariam os palhaços num teatro, e na verdade aquele assunto poderia passar por uma comédia, que de verdade só tinha a aparência. Aquele que deveria ser o nosso juiz era nosso acusador, e nossos adversários animavam contra nós aquele mau juiz. Tendo-o então como inimigo e tal inimigo, que poderíamos fazer senão ficar em silêncio, que é uma espécie de defesa, principalmente nada tendo a responder, que lhe pudesse ser agradável, porque o temor de violar nossas santas leis nos fechava a boca.
Depois de ter ele dado algumas ordens com relação aos edifícios, perguntou-nos seriamente e com gravidade, por que fazíamos dificuldade em comer carne de porco. Nossos adversários, então, para torná-lo ainda mais favorável a eles, por meio de suas adulações, puseram-se a gargalhar tão desabridamente, que alguns, mesmo dos oficiais do príncipe, mal toleravam aquele desprezo e falta de respeito, que lhe era devido e que era tanto maior, quanto no estado em que ele estava, somente os seus mais íntimos poderiam sem perigo tomar a liberdade de apenas sorrir em sua presença.

Assim respondemos: “Os costumes dos povos são diferentes e como há coisas que nos são permitidas e a outros não, assim há outras também que são proibidas aos nossos adversários”. Um dos nossos acrescentou que há mesmo muitos que não comem carne de carneiro e ele retorquiu rindo-se: “Eles têm razão. A carne não é boa”. Essas zombarias aumentaram ainda nossas penas, mas por fim ele nos disse, com emoção: “Quisera saber em que direito fundais vosso direito de burguesia”. Nós então começamos a apresentar-lhe nossas razões; ele achou facilmente que eram boas e nós quisemos então citar outras mais fortes, mas ele levantou-se de repente, foi depressa a uma grande sala, mandou fechar as janelas, cujos vidros impediam que o ar entrasse, somente deixavam passar a luz e eram tão claros e tão brilhantes que poderiam ser tidos por cristais de rocha. Depois veio a nós assaz mansamente e disse-nos com um tom moderado de voz: “Que me tendes então a dizer?” Quisemos então continuar a apresentar-lhe as nossas razões, em poucas palavras, mas em vez de nos escutar, ele foi correndo para outra sala, onde tinha ordenado que colocassem quadros de antigos pintores. Vendo assim o julgamento do nosso assunto interrompido e de tantas maneiras diferentes, julgando que nada mais tínhamos a fazer do que nos preparar para a morte, recorremos em tal contingência ao verdadeiro Deus, para rogar-lhe que nos salvasse do furor daquele falso deus. Ele teve compaixão de nós e sua infinita bondade acalmou a cólera de Caio. Ele ordenou que nos retirássemos e foi-se embora, depois de nos ter dito somente: “Essa gente não é tão má, quanto infeliz! São insensatos em não acreditar que eu sou de natureza divina”.

Foi assim que saímos não de um tribunal, mas de um teatro e de uma prisão, pois não era deveras uma comédia verno-nos ridicularizados e motejados, desprezados mesmo? E os rigores de uma prisão são talvez comparáveis aos tormentos que nos faziam sofrer tantas blasfêmias contra Deus e tantas ameaças de um tão poderoso imperador, encolerizado contra nós, porque os judeus eram os únicos que resistiam à sua louca paixão de ser reconhecido como Deus? respiramos então um pouco, não por amor à vida, pois se nossa morte tivesse podido ser útil à conservação de nossas leis, nós a teríamos recebido com alegria, como podendo nos levar a uma feliz eternidade; mas, além de inútil, ela teria sido também vergonhosa para os que nos tinham enviado porque ordinariamente não se julgam as coisas senão pelos seus resultados; esta razão fazia que nos consolássemos de algum modo por termos escapado de tão grande perigo em que nos encontrávamos, pela sentença que o imperador pronunciaria. Como poderia ele estar informado da justiça de nossa causa se ele não se dignava nem mesmo a nos ouvir? Que há de mais cruel do que ver a salvação de toda nossa nação depender da maneira como os seus cinco embaixadores eram tratados? Se Caio se declarasse em favor dos habitantes de Alexandria, que outra cidade deixaria os judeus em paz? Que outra os pouparia? Que outra não destruiria seus oratórios? Que outra não lhes procuraria impedir viver segundo suas leis? Assim, tratava-se da anulação de todos os privilégios e de sua inteira ruína. Esses pensamentos nos esmagavam sob o peso da dor; não víamos recurso algum em nossa desgraça e aqueles que antes nos ajudavam, perdendo então a esperança no feliz resultado de nossa causa, restiravam-se sem mais nos querer auxiliar, quando nos mandavam chamar, tanto estavam persuadidos da bondade e da justiça daquele homem que queria passar por Deus.

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